Foto: Rovena Rosa
Tornar melhor a vida das pessoas em cada um dos quase 6 mil municípios brasileiros será o desafio dos novos prefeitos a partir de 1º de janeiro de 2021. Entre os temas de destaque está a saúde, que ganhou ainda maior repercussão devido ao contexto da pandemia de covid-19. Especialistas ouvidos pela Agência Brasil apontam a transversalidade quando o assunto é saúde – trazendo à tona problemas relacionados à moradia, transporte e saneamento básico como fatores determinantes na garantia da saúde dos cidadãos – e revelam alguns dos desafios da pasta na esfera municipal.
“Saúde é um conjunto de ações sociais, ele não é só assistência médica. São atividades de infraestrutura que não dependem só do prefeito, mas que ele pode começar a articular os recursos federais e estaduais para trabalhar essas três coisas que eu acho cruciais para a gente poder melhorar as condições de saúde, que é moradia, água e esgoto”, disse Oswaldo Tanaka, docente do departamento de Política, Gestão e Saúde da Faculdade de Saúde Pública da USP.
Tanaka destacou a importância das unidades básicas de Saúde (UBS) no contexto da pandemia, como forma de atender pacientes no início da infecção e evitar que se tornem casos mais graves. “Do ponto de vista assistencial, acho que nós vamos ter que fortalecer ainda as unidades básicas de Saúde, que, com a covid-19, se mostraram uma porta de entrada muito importante para a gente pegar os casos leves, evitando que eles prossigam.”
A pandemia também reforçou a necessidade de integração da saúde com outras áreas de gestão do município. “Compete ao município tentar evitar aglomeração e aí é poder oferecer transporte coletivo com maior frequência, compete também ao município garantir o uso de máscara, isolamento social e álcool gel em todos os espaços”, disse Tanaka, que acrescentou a questão da moradia, citando que nas periferias as pessoas moram em espaços menores e com maior concentração nas residências, o que aumenta a transmissibilidade da doença.
A docente do Departamento de Medicina Preventiva da Unifesp, Lumena Almeida Castro Furtado, avalia que “o processo de saúde está completamente ligado à proteção da vida”. Para ela, além da necessidade do prefeito se comprometer com um sistema de saúde público e universal, ele deve levar em consideração a vinculação da saúde com outras áreas. “O prefeito tem essa possibilidade de considerar a saúde em uma conexão com outras políticas: moradia, educação, cultura, esporte. Nos municípios em que há um trabalho interessante em saúde, o prefeito tem essa visão da saúde para além do serviço de saúde.”
Intersecção
Pela Constituição Brasileira, o município, o estado e a União são responsáveis por tudo no sistema de saúde e cada um tem um tipo de responsabilidade. Do ponto de vista formal, Tanaka explicou que a atenção básica ficou sob responsabilidade do município, na qual ele deveria gastar 15% de seus recursos, e, em princípio, a média e a alta complexidade ficaram com o estado e o nível federal com o financiamento. Essa divisão não exclui a necessidade do trabalho em rede.
No entanto, a produção do cuidado em saúde acontece já no âmbito do município, com a intersecção de políticas de diferentes áreas. Lumena explicou que a articulação com outros setores é produtora de saúde. “Eu não tenho como fazer saúde integral sem ter essa articulação.”
Outra questão que a docente que considera importante é o prefeito saber que a saúde acontece na relação dos trabalhadores do setor com as pessoas. “Ele tem que investir no trabalhador. Ele tem que tentar ganhar o trabalhador com o projeto de SUS que ele quer construir, tem que compromissar o trabalhador com a proposta que ele quer fazer no sistema de saúde.”
Também é o que pensa a técnica em enfermagem Marta Regina da Fonseca, funcionária pública de um município mineiro há 26 anos. “Percebemos que não somos ouvidos e a gente que está o tempo todo no embate com o paciente, temos muito a acrescentar só que eles não nos ouvem e nem querem. Eu acredito que falta gestão, não recurso”.
Marta conta também que, no município em que atua, muitas vezes as pessoas têm que entrar na Justiça com pedidos de cirurgias de emergência ou pedidos de remédios específicos para doenças crônicas. “É necessário uma redução dessa judicialização, para que a pessoa tenha acesso rápido para aquilo que ele realmente precisa”, disse.
Carências
A enfermeira da família Jaqueline Souza de Moraes, que trabalha no serviço público há nove anos na região metropolitana de São Paulo, aponta que o déficit de recursos humanos em todas as categorias (enfermeiros, médicos, agentes de saúde e auxiliares de enfermagem) é uma das maiores carências em termos de saúde do município em que trabalha.
“A falta de especialidades, como psiquiatra, ginecologista, neurologista, dentre outras, e a longa espera para a realização de exames e procedimentos de alta complexidade também são fatores. A falta de vagas nos centros de apoio ao paciente de saúde mental e usuários de álcool e drogas e falta de suporte integral à mulher vítima de violência também são carências do município”, aponta a enfermeira.
Planejamento
A professora da Unifesp avalia que é preciso haver um planejamento para longo prazo, mesmo que ultrapasse os quatro anos de mandato do prefeito. “Não pode cada vez que chega alguém mudar esse planejamento. Se não, a gente vai estar sempre: um chega, aí não termina o projeto porque foi do outro, vai querer criar uma coisa nova onde não precisa, abre um hospital onde tem mais pressão e não onde é necessário.”
Segundo Lumena, as três esferas de governo são responsáveis por articular uma rede de atendimento, já que os municípios menores, por exemplo, contam com menor estrutura de saúde. “70% dos municípios brasileiros têm menos de 20 mil habitantes. Em um município pequeno não vai ter a rede de saúde completa, então o gestor municipal é responsável por articular uma produção em rede [com municípios próximos que tenham as estruturas que faltam].”
Se um paciente entra no sistema de saúde pela UBS, mas precisa de um atendimento especializado que aquela cidade não oferece, o poder municipal é responsável por articular uma rede que proporcione tal atendimento para aquela pessoa. “Então não é que o município é responsável só por atenção básica, ele é responsável por cuidado integral. Assim como o estado é responsável por isso. Se o estado ajudar, fizer o papel dele, é muito mais fácil isso. A União também é responsável por ajudar com diretrizes, por apoiar esse processo, por financiamento, então os três têm responsabilidade por toda a atenção que a pessoa precisa, mas cada um com um tipo de papel.”
Filas
O professor Oswaldo Tanaka destaca a necessidade do trabalho em rede para o encaminhamento do paciente dentro do sistema de saúde. “No setor saúde hoje nós temos um grande problema que são as filas. As filas para consultas de especialidade, as filas para exames complementares e que depende também de investimento.”
A demora por uma consulta com especialistas é uma das maiores reclamações dos usuários do sistema público. A empregada doméstica Eliane Neres, de 42 anos, é usuária das unidades de saúde, mesmo tendo plano de saúde. Ela utiliza os programas de saúde da mulher e leva a filha Laura, de 3 anos, para consultas e exames, porque a criança não pode ser incluída em seu plano de saúde.
Embora aprove e elogie as consultas médicas, Eliane considera a saúde do município bem precária. “Para conseguir um agendamento é muito demorado. E são bastante cheios tanto os hospitais como as UBS. Porém, quando precisei fui bem atendida. Os médicos são ótimos. Mas pode melhorar no agendamento. Minha filha tinha um pedido médico para passar com neurologista, mas só consegui depois de um ano. Achei um absurdo!”.
Tanaka avalia que a solução passa por investimento em equipamentos que atendem média e alta complexidade, mas há também o componente da gestão. “Eu acho que vai ter que ter um ajuste entre a gestão municipal e a gestão estadual para que aquela porta de entrada, que é a UBS, consiga dar vazão para as necessidades que ela tem nos equipamentos do ponto de vista estadual”, disse.
Segundo ele, é preciso fazer um ajuste para que os equipamentos do estado possam dar retaguarda para a atenção básica, “que é a porta de entrada principal dos munícipes em relação à assistência médica”.
É o que espera a agente comunitária de saúde Eliane Leite dos Santos, de 47 anos, que está nas duas pontas do sistema: ela trabalha em UBS na região metropolitana de São Paulo e também é paciente.
“Sou hipertensa há mais ou menos quatro anos e faço meu acompanhamento na UBS. Também nos hospitais passo por algumas especialidades, como pneumologista, otorrinolaringologista e com mastologista. Além das consultas, realizo meus exames de rotina nas UBS e em alguns hospitais da rede e sempre fui bem atendida nesses locais”.
No entanto, Elaine deseja mais atenção à saúde básica. “Espero que os próximos governantes olhem mais pela saúde, pois nossa maior dificuldade nas UBS é a falta de contratação de médicos. No bairro em que trabalho a nossa UBS está só com três médicos, sendo que a UBS cobre quatro áreas [regiões do município], portanto os médicos ficam sobrecarregados. Com mais contratação, nossa demanda seria muito melhor [atendida]. Nossos munícipes merecem”.
Gestantes
A garantia de atendimento à gestante é uma das responsabilidades da saúde pública municipal. A doutora em obstetrícia de alto risco Maria Rita de Souza Mesquita, diretora de defesa profissional da Sociedade de Ginecologia e Obstetrícia do Estado de São Paulo (Sogesp), diz que a atenção ao pré-natal proporciona uma assistência mais adequada ao parto e menores riscos de complicações tanto para a criança quanto para a paciente, dando as principais orientações sobre a gestação, rastreando situações de risco e tratando intercorrências que podem interferir no bem-estar de ambos.
“O maior desafio que a prefeitura tem é garantir que todas as gestantes, sem exceção, tenham um acesso efetivo à assistência pré-natal, tenham a garantia de uma avaliação durante toda a gestação e a segurança que ela terá um hospital com condições, com ambiência adequada, para dar um atendimento humanizado”, disse.
Maria Rita acrescentou que a gestante deve ter garantidos, além do atendimento na UBS, a realização de exames solicitados durante o pré-natal em laboratórios conveniados e a garantia de hospitais que façam um parto humanizado. “E eles [Poder Público] também têm que garantir hospitais que tenham condições de atendimento para aquelas gestantes que começam o pré-natal e são de baixo risco e se tornam de alto risco. Aí ela passa a não ser mais atendida nessas unidades básicas de Saúde”, explicou.
Saúde integral da gestante
Para a professora Lumena, da Unifesp, não dá para pensar a gestante sem pensar a mulher, então é fundamental que o município tenha o compromisso com sua saúde integral. “Aquela gestante chega para você, ela é aquela mulher que sofre violência doméstica ou que é mãe sozinha e ela tem que dar conta de tudo financeiramente na casa ou é uma mulher que acabou de ficar sem trabalho por causa da pandemia, então a gente tem que pensar aquela mulher, que também está gestante. Para isso, tem que ter uma rede básica que tem vínculo com essa mulher”, disse.
Lumena ressaltou que a rede básica não é a única porta de entrada do sistema de saúde, pode ser que a mulher grávida entre pelo pronto-socorro ou que ela seja uma usuária do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) e descobre que está grávida. Diante disso, deve haver articulação para que ela seja encaminhada para um atendimento de cuidado contínuo. “A gestante não é alguém que chegou em uma urgência e você manda embora. Se ela chegar em uma urgência, tem que ser encaminhada para uma UBS para o cuidado contínuo. Ela tem que ter direito a um pré-natal que lhe dê um cuidado continuado”, disse.
Outro direito da gestante é saber qual a maternidade de referência para realização do parto. “Se ela não sabe que maternidade é, ela não vai conseguir chegar”, disse a professora. Ela chamou atenção para o direito ao parto normal humanizado, mas afirmou que poucos municípios têm implementado. “Alguns lugares têm até relação junto com doulas, casas de parto, mas o princípio geral que a gente quer garantir é que ela tenha acesso a um parto humanizado, ela tenha acesso a um parto normal de qualidade, se esse for o processo natural dela, isso é uma coisa bem importante, isso diminui mortalidade materna, isso ajuda a gestante depois no seu pós-parto, essa é uma questão que a gente tem conversado bastante e poucos municípios têm esse compromisso.”
A Razão de Mortalidade Materna (RMM), um dos principais indicadores de qualidade de atenção à saúde das mulheres no período reprodutivo, foi de 59,1 óbitos para cada 100 mil nascidos vivos no país em 2018, enquanto no ano anterior era de 64,5, segundo dados do Ministério da Saúde. A meta do país, dentro dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) das Nações Unidas, é que a mortalidade materna caia para 30 por 100 mil nascidos vivos até o ano de 2030, conforme divulgou o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
A diretora da Sogesp afirmou ainda que é importante que exista uma equipe multidisciplinar nas unidades básicas de Saúde para o atendimento das gestantes. “Então não é só o médico especialista em obstetrícia que está envolvido nisso. Tem enfermeiras obstetrizes, tem a psicóloga, que também ajudam nesse atendimento. O município deve fornecer condições de atendimento para essa gestante, uma equipe multidisciplinar para dar o atendimento e garantia para esse pré-natal.”
Além disso, Maria Rita afirmou que é responsabilidade do município criar protocolos de atendimento para que eles sejam uniformizados em todas as unidades básicas de Saúde. Dessa forma, os médicos podem realizar a avaliação inicial das gestantes nos mesmos moldes e pedir os mesmos exames básicos para todas elas.
Para que a gestante chegue à unidade de atendimento para o pré-natal, é preciso que ela tenha informações sobre a importância do acompanhamento pré-natal. “Falta programas de educação para as mulheres procurarem o pré-natal de forma efetiva. O problema não é só a disponibilidade do município, é conscientizar a mulher que ela tem que procurar o pré-natal o mais rápido possível quando ela perceber ou souber ou confirmar sua gravidez.”
Parto pelo SUS
A fisioterapeuta Munique de Lima Pereira, que mora no Sul do país, foi demitida, perdeu seu plano de saúde e logo depois descobriu que estava grávida. Ela fez alguns exames no sistema particular quando foi procurar o posto de saúde para consulta e exames. Ela teve algumas dificuldades, mas no fim conseguiu ter o acompanhamento e o parto humanizado.
“Já estava na fase da segunda bateria de exames laboratoriais, agendei direto na unidade de saúde da minha referência e fiz meu cartão SUS. Participei de um acolhimento de gestantes que acontece toda semana, mas achei bem fraco porque a profissional, uma auxiliar de dentista, não entendia nada de gestantes. Depois houve atendimento pela enfermeira e pela médica obstetra que foi excelente, melhor que a médica que eu tinha pelo plano. Ela me indicou um hospital de referência, mas eu busquei avaliação com 40 semanas em outro hospital, o Conceição, pois achei que perdia líquido, mas era alarme falso, no outro dia entrei em trabalho de parto e fiquei em casa com doula até ir para o Conceição”, relatou.
Ela disse que buscou o Hospital Conceição porque tem o programa direcionado para o parto humanizado. “Tanto na avaliação anterior como no trabalho de parto fui bem atendida, pedi preferência por enfermeira obstétrica. Sofri alguma violência obstétrica leve, digamos assim, mas foi respeitado meu plano de parto e minhas escolhas”. Munique e o marido continuam utilizando somente o sistema público de saúde, já as consultas com o pediatra do filho são feitas no particular. As informações são da Agência Brasil.