O relatório de um delegado da Polícia Federal utilizado pelo corregedor nacional de Justiça, Luis Felipe Salomão, para pedir o afastamento da juíza Gabriela Hardt coloca em xeque o modelo de todos os acordos de colaboração premiada feitos durante a Lava Jato.
O documento é assinado pelo delegado Élzio Vicente da Silva e ataca o principal instrumento jurídico utilizado por investigadores na operação de Curitiba para avançar sobre os desvios na Petrobras.
Gabriela Hardt foi substituta de Sergio Moro na 13ª Vara Federal de Curitiba. Após decisão de Salomão, o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) revogou o afastamento da juíza.
O delegado Élzio Vicente da Silva afirma que os repasses de bilhões em multas à estatal e os outros bilhões que iriam para a criação de uma fundação privada, fatos que agora estão sendo questionados, foram resultado de acordos que usavam as mesmas metodologias das delações premiadas, que, na visão dele, são problemáticas.
Durante a Lava Jato, diz o relatório, foram fechados 209 acordos de colaboração e 17 de leniência.
Embora utilizada há anos, a ferramenta da colaboração premiada foi regulamentada após manifestações de 2013, no governo de Dilma Rousseff (PT), pouco antes do início da Lava Jato.
De acordo com o delegado, os procuradores transformaram o que estava previsto em lei, instrumento que serviria como um meio de obtenção de provas, em uma “espécie mista de acordo de não persecução penal (não existente na legislação da época) e de transação penal”.
“Tratava-se, aparentemente, da importação de um modelo de resolução de questões criminais por meio do pagamento de dinheiro, inclusive negociando penas, cujas decisões homologatórias, no entender de Deltan Dallagnol, ‘não havendo questionamentos, transitavam em julgado’”, diz o delegado no relatório.
Para ele, o foco dos acordos deixou de ser a “contribuição do colaborador para a apuração em si” e passou a ser ajustes nos “efeitos da condenação, que unificavam e antecipavam penas, estabeleciam multas e as consequências de uma eventual sentença condenatória”.
Essa mudança, diz o investigador, permitiu que Moro destinasse valores de forma antecipada, o que foi a base para o direcionamento inquestionado de dinheiro para a Petrobras alvo do CNJ.
Após listar as várias irregularidades no modelo de acordo para os repasses à Petrobras e o ensaio para criação da fundação, o delegado coloca Moro, Hardt e o procurador Deltan Dallagnol como envolvidos em um crime de peculato. O argumento é que eles teriam desviado o dinheiro ao repassar os valores à Petrobras sem antes definir qual seria a destinação correta.
“A discussão desse modelo de colaboração e de leniência importa porque tais ajustes foram a base dos repasses realizados no âmbito do já debatido processo denominado representação criminal e caracterizaram verdadeiros ensaios para a posterior celebração do acordo de assunção de compromissos firmados entre força-tarefa e Petrobras”, diz o delegado.
No caso dos R$ 2,1 bilhões repassados à Petrobras, o delegado afirma que eles foram enviados “sem prévia decretação de perda, sem a participação das pessoas às quais as contas judiciais estavam vinculadas, em grande parte sem participação de outros atores (União, por exemplo) e sem questionamentos pelo juízo”.
Os repasses foram feitos por meio de uma representação criminal aberta de ofício por Moro em maio de 2016, quando já havia um processo formal de cooperação com os americanos.
Esse processo era sigiloso e apenas Moro, o MPF (Ministério Público Federal) representado por Deltan e a Petrobras tinham acesso. A falta de transparência na gestão dos valores, diz o delegado, permitiu o direcionamento do dinheiro sem questionamentos.
“Todo o conjunto aponta que o juízo optou pela criação de um canal direto de repasse dos recursos sem a participação da União, dos colaboradores ou lenientes, ou de outras partes, antes de eventuais sentenças condenatórias dos colaboradores e sem prévia decretação de perda”.
Para concluir que não houve apuração sobre o real prejuízo à Petrobras antes do repasse dos valores, o delegado cita alguns depoimentos colhidos, entre eles o de Carlos Macedo, gerente da estatal.
“O levantamento do efetivo prejuízo causado não foi concluído até a presente data, esclarecendo que a empresa foi obrigada a estabelecer uma metodologia para aferição do impacto dos pagamentos indevidos nos ativos da companhia, ou seja, trata-se de um critério contábil”, disse Macedo.
No caso dos R$ 2,5 bilhões que iriam para a fundação em construção, o delegado da PF analisou documentos da cooperação internacional com os Estados Unidos e o posterior acordo entre MPF e Petrobras sobre o tema.
O acordo para a criação da fundação foi homologado por Hardt, mas suspenso por uma decisão do STF (Supremo Tribunal Federal). O investigador aponta falha na realização de diligências pelos americanos no Brasil e tratativas entre procuradores e americanos fora do processo de cooperação.
Essas conversas versavam sobre a porcentagem dos valores do acordo entre americanos e Petrobras que voltaria ao país.
O delegado é ainda mais incisivo sobre a criação e os valores a serem repassados à fundação. Ele afirma que o foco pode ter sido o “protagonismo pessoal” dos integrantes da força-tarefa e “favorecia a projeção individual inclusive no campo político”.
“A pessoalidade de todo esse esforço foi posteriormente concretizada pela migração do então juiz Sergio Moro e do então procurador Deltan Dallagnol para a atividade político-partidária”, diz ele.
O MPF foi o principal condutor dos acordos de colaboração premiada e leniência na Lava Jato porque entrou com uma ação no STF, em 2016, para proibir a participação da PF nas negociações. O argumento era que somente o MPF poderia firmar os acordos, uma vez que é o titular na ação penal.
A posição do MPF foi derrubada pelo STF apenas após o auge da operação, o que fez com que a PF ficasse de fora de grande parte dos acordos.
Fabio Serapião/Folhapress