Lula reconhece violações de direitos humanos sob resistência militar e ceticismo de famílias

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O governo Lula mudou neste ano a forma de atuação do Executivo brasileiro na Corte Interamericana de Direitos Humanos, reconheceu parcialmente responsabilidades e pediu desculpas públicas em três casos em que o país é julgado por violação de direitos fundamentais.

O MDHC (Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania) também pretende iniciar no ano que vem a realização de atos públicos de pedidos de desculpas determinados pela corte em seis casos com sentenças já publicadas.

A mudança de postura e as intenções da pasta, porém, são vistas com ceticismos por familiares de vítimas e seus representantes.

Eles consideram que os reconhecimentos nas audiências são limitados e cobram cumprimento de outras penas da corte, como a punição e a adoção de políticas públicas para impedir a repetição de violações.

As cerimônias de pedido de desculpas também enfrentam resistência das Forças Armadas nos casos que envolvem o período da ditadura militar (1964-1985). Além disso, a recriação da Comissão de Mortos e Desaparecidos, por exemplo, vem sendo protelada para não aumentar a tensão com os militares.

Estão entre as condenações a falta de investigação, julgamento e punição dos responsáveis pelo assassinato do jornalista Vladimir Herzog, em 1975, e pelo desaparecimento e morte de 62 pessoas na Guerrilha do Araguaia (1972-74).

Os casos na Corte Interamericana de Direitos Humanos versam também sobre conflitos fundiários, morte de defensores dos direitos humanos e violência policial, entre outros temas.

As condenações se referem a casos ocorridos entre a ditadura e a década de 1990, mas não foram solucionados pelo poder público ao longo do tempo, motivo pelo qual as famílias recorreram à corte internacional.

Desde o início do ano, o MDHC pagou cerca de R$ 35 milhões em indenizações determinadas pela corte, mas represadas durante a gestão Jair Bolsonaro (PL). Também cumpriu pontos resolutivos como a publicação de sentenças no Diário Oficial e jornais.

A mudança mais simbólica, contudo, são os reconhecimentos parciais perante os juízes durante as audiências de julgamento.

O reconhecimento parcial e o pedido de desculpas ocorreram nos casos dos quilombolas afetados pela base de Alcântara, das mães de Acari e de duas mulheres negras que sofreram discriminação racial no trabalho com demora na punição dos responsáveis.

O posicionamento não é inédito, mas uma mudança em relação ao padrão adotado pelo governo desde o segundo mandato de Lula até a gestão Bolsonaro, passando pelos governos Michel Temer e Dilma Rousseff.

O único caso em que o Brasil reconheceu parcialmente a violação de direitos humanos foi o movido pela família de Damião Ximenes Lopes por maus-tratos e morte dentro de um hospital psiquiátrico. Esta foi a primeira condenação do país na corte. Desde então, nos 11 casos seguintes, o país não reconheceu as violações de que foi acusado, tendo sido condenado em 10.

No caso das mães de Acari, o governo reconheceu apenas a violação pela morte de Edmea Euzébio e Sheila Conceição, mas não pelas falhas nas investigações da chacina que vitimou 11 jovens da favela da zona norte do Rio de Janeiro dois anos antes. Edmea foi morta quando lutava pela punição dos policiais militares suspeitos pelos homicídios.

“O reconhecimento que fizeram foi insuficiente. O caso da Edmea eles reconheceram porque não tinha como dizer não. Até hoje sete famílias não têm certidão de óbito. Além dos 33 anos de espera, são décadas que vêm carregadas de dor para todas as famílias sem o reconhecimento”, disse Aline Leite, irmã de uma das vítimas da chacina.

O coordenador da ONG Justiça Global, Eduardo Baker, afirma que os reconhecimentos só serão positivos caso sejam acompanhados do cumprimento de pontos resolutivos determinados pela corte que preveem políticas públicas para evitar a repetição das violações.

“Se o reconhecimento for o primeiro passo para essa direção [medidas de não repetição], é positivo. Mas se na hora de gerar essas medidas o Estado embarreirar a aplicação, tem pouca valia. Sou um pouco cauteloso e relutante de estarmos indo para uma direção melhor. Mas precisamos investir no espaço que está aberto”, disse Baker, que acompanhou o caso Alcântara.

O Brasil concluiu neste ano o cumprimento dos pontos resolutivos do caso Ximenes Lopes. O arquivamento ocorreu após a implementação de um curso permanente de capacitação em direitos humanos e saúde mental pelo MDHC.

Isabel Penido, coordenadora-geral dos Sistemas Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos do ministério, afirma que os reconhecimentos parciais e o cumprimento de alguns pontos resolutivos são uma forma de recuperar a credibilidade do governo junto aos familiares das vítimas.

“Eu acho que os peticionários [familiares] tinham uma expectativa que a gente conseguisse resolver as coisas mais rápido. Eu acolho, entendo e escuto bastante sobre isso. O nosso discurso não é esse de só entrega, entrega, entrega. A gente tem também uma perspectiva crítica, mas eu estou otimista”, disse ela.

A coordenadora para Brasil e Cone Sul do Cejil (Centro pela Justiça e o Direito Internacional), Helena Rocha, afirma ver uma “mudança no balanço de poder” das instituições brasileiras envolvidas nos julgamentos na corte. Para ela, o MDHC conquistou mais espaço frente à AGU e o Itamaraty na atuação desses casos.

“A AGU tinha um posicionamento de defesa de todos os pontos até o último recurso. Mesmo sem fundamentos e argumentos, apresentava contraposição. Essa defesa formal muitas vezes entrava em contradição com o posicionamento público das autoridades brasileiras. O MDHC ganhou um protagonismo maior”, disse Rocha.

O procurador da União de Assuntos Internacionais da AGU, Boni Soares, afirma que o reconhecimento se dá caso a caso, desde que com segurança jurídica para o país.

“Essa análise é caso a caso. Reconhecemos nesses casos porque havia segurança jurídica, porque eram fatos que se provaram [reais]. Ainda que tenhamos segurança jurídica, há um novo governo que tem essa vertente e concorda com esse tipo de postura no processo. Eles entram com a vontade política de fazer e nós, com a segurança jurídica para tornar aquilo viável”, disse ele.

Soares afirmou que pretende fazer com que reconhecimentos ocorram antes dos casos chegarem à corte, quando ainda estão na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que faz uma espécie de triagem para a admissibilidade dos casos. “Espero ter, daqui a alguns anos, mais acordos do que sentenças”.

Italo Nogueira/Folhapress

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