A reforma tributária prevê a criação do Cadastro Imobiliário Brasileiro (CIB), uma espécie de “CPF do imóvel” a partir de 2026. No CIB, o valor de referência para os imóveis passará a ser o valor de mercado e com atualizações com dados que vêm de cartórios, prefeituras e da Receita Federal.
Essa mudança na dinâmica das informações sobre imóveis tem gerado receio em proprietários e investidores em todo o País por causa de uma possível atualização do valor venal, usado como base do cálculo para o Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU).
Mesmo sem mudança na alíquota, o temor é de que os dados levem a uma atualização do valor venal usado no IPTU e causem um salto de preços no imposto que afetaria grande parte dos imóveis.
O impacto da mudança ainda é incerto, e os especialistas se dividem entre os que acreditam que ela pode causar um aumento de preços de IPTU e os que dizem que o CIB será indiferente nesse aspecto. O CIB passa a valer a partir do ano que vem para embasar as cobranças de impostos de imóveis no âmbito da Reforma Tributária a partir de 2027 — que trará mudanças especialmente para proprietários de escritórios ou de múltiplos ativos de aluguel.
Procurados, o Ministério da Fazenda e a Receita Federal enviaram esclarecimentos sobre o CIB, mas não comentaram sobre o potencial impacto no aumento do valor venal dos imóveis, que resultaria em aumento do IPTU.
“A Receita Federal esclarece que não procedem informações que têm circulado sobre um suposto aumento da tributação de locações e vendas de imóveis com a Reforma Tributária. Inicialmente, é importante destacar que a Reforma não cria verdadeiramente uma tributação sobre o setor imobiliário, apenas substitui os tributos federais, estaduais e municipais atuais pelo imposto sobre valor agregado – IVA dual, a partir de 2027”, informaram.
O presidente-executivo do Sindicato da Habitação de São Paulo (Secovi-SP), Ely Wertheim, acredita que o CIB não terá um impacto negativo para a precificação do IPTU em São Paulo, e, em algumas áreas sobrevalorizadas, ele pode acabar até mesmo reduzindo o valor do imposto.
“Tecnicamente, a gente entende que não (haverá aumento de preço do IPTU), porque o CIB não tem esse objetivo. Evidentemente, não podemos afirmar o que cada prefeitura vai acabar fazendo com essa informação, isso é futuro. Mas o objetivo da criação desse cadastro tem a ver com a reforma tributária, para servir como referência das transações imobiliárias. Ele não vai ser utilizado automaticamente”, afirma Wertheim.
O sócio da área imobiliária do escritório Cescon, Barrieu, Flesch & Barreto Advogados, Vinícius Martins, adota uma postura de cautela, classificando a preocupação com o preço do IPTU diante da criação do CIB, por enquanto, como mera especulação. “Se nada mudar, eu acredito que não vai ter um impacto direto no valor de referência (para o IPTU). Precisa ter outras normativas”, diz Martins.
O advogado explica que a criação do CIB serve como base para a implementação da cobrança dos impostos CBS e IBS, que trarão uma simplificação tributária ao País. Por isso, uma base atualizada de valores se torna uma obrigação acessória da reforma.
Já Vinícius Seixas, sócio do escritório Pinheiro Neto, diz que, a princípio, não descarta que proprietários e investidores de imóveis tenham impacto no valor do IPTU por conta do CIB.
“Supondo que as prefeituras façam uma atualização dos valores venais, que é a base de cálculo do IPTU, com base no CIB, sim, pode impactar. Mas isso ainda é algo que não é o objetivo da regra. Agora presume-se que, com a troca de informação, pode ser que haja a atualização dos valores venais e eventualmente, ao aumentar o valor venal, aumenta a base de cálculo do IPTU. Se aumentar o IPTU, pode ser que os retornos dos proprietários tenham uma redução”, afirma Seixas.
O CEO do GRI Institute, organização do setor imobiliário presente em mais de 100 países, Gustavo Favaron, conta que existem precedentes do chamado CPF dos imóveis no exterior. “Nos países nórdicos, como Suécia, Noruega e Dinamarca, existem agências nacionais responsáveis por mapear e registrar propriedades. Na Holanda, há um órgão nacional com a mesma função. Em grande parte da Europa, há um land registry (registro de terras) que integra e digitaliza essas informações”, diz.
Para Favaron, o CIB é mais um fator que pode nortear o mercado com relação ao valor dos imóveis, junto a pontos como oferta e demanda e macroeconomia. Ele diz que o eventual aumento do IPTU deve ter impacto limitado ao consumidor de alta renda. “O impacto maior deve recair sobre moradores de classe média e média baixa, já que esse perfil tem orçamento mais limitado e sentirá mais diretamente o peso de uma elevação da base tributária nos gastos com moradia”, afirma.
O CEO e cofundador da startup imobiliária Liquid, Thiago Yaak, conta que o mercado brasileiro ainda tem imóveis com preços abaixo dos verdadeiros em diversas cidades e uma eventual mudança na base do cálculo do imposto pode causar elevação de preço.
“O maior impacto será para quem vive em imóveis cujo valor venal está congelado há muitos anos. Em muitas cidades, as prefeituras não atualizam as plantas de valores, e os imóveis são taxados muito abaixo de seu preço real de mercado. O CIB aproxima esses valores da realidade, o que pode resultar em aumentos de IPTU. Isso atinge principalmente moradores que compraram imóveis há muito tempo, em regiões que se valorizaram, mas continuaram pagando imposto sobre uma base antiga”, diz Yaak.
Ele lembra que os investidores imobiliários precisarão se adequar também à cobrança do CBS e do IBS, que incidirá sobre quem tem mais de três imóveis com ganho anual de aluguéis de R$ 240 mil ou mais. “Para o investidor profissional, o CIB traz um ganho de governança. Os imóveis regularizados, com dados claros e valores de referência reconhecidos, são mais fáceis de negociar, securitizar ou usar como garantia em crédito estruturado. No longo prazo, isso tende a valorizar quem opera de forma estruturada e aumentar a liquidez dos portfólios”, afirma Yaak.
Bruno Sindona, fundador da holding imobiliária Sindona, afirma que as informações que muitas cidades brasileiras têm sobre os imóveis estão desatualizadas, ainda que tenham sido refinadas nos últimos anos com sistemas de integração de fotos e imagens aéreas. Por isso, ele acredita que os novos dados terão impacto nos preços do IPTU.
“Sobre se o IPTU tende a aumentar, eu acho que tende sim. O IPTU no Brasil é relativamente baixo em comparação com o mundo. Boa parte desse valor baixo não vem da alíquota, vem do valor venal precário que muitas prefeituras têm. Mas nos últimos anos as prefeituras já vêm corrigindo muito esse valor venal”, afirma.
Outros possíveis impactos
No caso de uma mudança no valor venal dos imóveis, outros dois impostos podem ser impactados pelo CIB: o Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis (ITBI) e o Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD). O motivo é o mesmo do IPTU. Mesmo sem aumento na alíquota, o incremento no valor do imóvel resultaria em um aumento do valor total pago.
Por exemplo, o ITBI pago na compra de um imóvel é de 3% do seu valor na cidade de São Paulo. Se esse imóvel for vendido por R$ 500 mil e o valor venal dele for de R$ 380 mil, o porcentual será cobrado sobre o valor menor, pois é o oficial. Com a mudança do valor para melhor refletir os preços, o valor total do imposto aumentaria também.
Vale ressaltar que as mudanças não são automáticas. Elas precisam de normatização de cada prefeitura (no caso do ITBI) e governo estadual (para o ITCMD). Mas as condições para a possibilidade de aumento passarão a existir com o CIB.
O que dizem as prefeituras
A reportagem procurou as prefeituras das 27 capitais dos Estados brasileiros para comentar o impacto potencial do CIB no IPTU, mas recebeu poucas respostas — ampliando a incerteza sobre o tema. A maioria disse que o CIB não terá impacto nos preços do IPTU. Uma delas foi a prefeitura de São Paulo, que informou manter informações atualizadas sobre os valores dos imóveis na cidade e que, por isso, o CIB não causaria aumento no imposto.
A prefeitura do Rio reforçou que o CIB não causaria aumento automático dos valores venais, mas reconheceu que a integração dos dados pode resultar em uma correção dos preços dos imóveis usados como base para o IPTU. “Embora o CIB possa possibilitar a atualização e correção de dados cadastrais, o que eventualmente pode refletir em ajustes no valor venal de alguns imóveis, a Prefeitura do Rio esclarece que qualquer alteração no IPTU dependerá de estudos técnicos, processos administrativos regulares e será sempre acompanhada de ampla transparência e comunicação prévia aos contribuintes”, informou.
A prefeitura de Porto Velho informou que a mudança na base do cálculo do IPTU depende de uma lei municipal específica e ressaltou ter autonomia para definir a base desse cálculo do imposto. A Secretaria Municipal das Finanças de Fortaleza informou que o CIB não cria tributos nem altera, por si só, a base de cálculo de impostos. “A implantação do CIB deve ser entendida como um instrumento de cooperação federativa”, disse, em nota.
A prefeitura de Belo Horizonte reforçou que o CIB não causará uma atualização automática de valores venais para definição de preços de IPTU, e que mudanças devem ser aprovadas por lei municipal. “Não é verdade que a implantação do CIB viabilize uma atualização automática dos valores venais dos imóveis para fins de IPTU. Esse imposto continua submetido às regras constitucionais e legais atualmente vigentes. Hoje, os municípios adotam as Plantas Genéricas de Valores (PGV), que têm por objetivo definir as regras para se chegar ao valor venal do imóvel, que é a base de cálculo do IPTU”, informou. A prefeitura de Curitiba tem discurso semelhante sobre o tema.
A prefeitura de Aracaju informou manter seus dados imobiliários atualizados e, portanto, não prevê aumento por causa do CIB. “A apuração do Valor Venal dos Imóveis, utilizado como base de cálculo do IPTU, já utiliza dados de mercado imobiliário, como provenientes de guias de ITBI e ofertas. Desse modo, a adoção do CIB não acarretará aumento dos valores venais para fins de IPTU”, disse.
Já a Secretaria Municipal de Planejamento, Orçamento, Finanças e Tecnologia de Boa Vista disse que existe a possibilidade de aumento do IPTU por causa do CIB. “Estima-se que esse valor real seja maior que o valor da base de dados do município. Portanto, há possibilidade de aumento tanto no ITBI, quanto no IPTU a partir de 2027”, informou, em nota.
A prefeitura de Vitória disse que não haverá aumento no IPTU devido ao CIB na cidade. “O IPTU continuará sendo um tributo municipal, com fato gerador e base de cálculo definidos no Código Tributário Nacional (arts. 32 a 38) e na Lei Municipal 4.476/1997 e suas alterações. Portanto, o CIB não provoca aumento do IPTU”, informou.
Lucas Agrela/Estadão